Dando o Fora na Dependência Digital (Parte 3)

A próxima vítima do bullying digital; A geração MSN; A geração ansiosa; Medo de ficar de fora; Libertando nossas crianças da dependência digital.

Hoje no Dando o Fora: A próxima vítima do bullying digital; A geração MSN; A geração ansiosa; Medo de ficar de fora; Libertando nossas crianças da dependência digital.

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Imagine que seu filho de 8 anos chega em casa da escola angustiado. 

  • Mamãe, preciso entrar no grupo do zap da escola. Agora!

Você e seu marido têm uma regra de “não-celular-até-os-14-anos”. 

  • Filho, você sabe muito bem que você é muito novo para ter um celular, ainda mais para entrar num grupo de zap.

  • Mas manhêeeee, todo mundo da minha sala tá nesse grupo. Meus amigos não falam mais comigo. Alguma coisa aconteceu. Preciso entrar nesse grupo. Eu preciso.

Desesperada, com medo de seu filho ficar isolado para sempre, você cede e entra no grupo do zap com seu celular. Pelo menos ele não vai ficar de fora e você pode, ao mesmo tempo, supervisioná-lo. Uns minutos depois, seu filho começa a chorar. Se desesperar. Os “amigos” da escola começaram a fazer memes de IA com o rosto do seu filho. Quando você olha no grupo, você percebe que não só as crianças não estão sendo supervisionadas pelos seus pais como também muitas das mensagens do grupo são enviadas no meio da madrugada.

Sem saber o que fazer, você liga para a escola pedindo uma reunião imediata. Na escola, os outros pais não entendem o que está acontecendo. 

  • Essa mensagem não pode ter vindo do meu filho. Ele estava dormindo ontem à noite.

  • Minha filha também. 

  • E onde estava o celular do seu filho?

Silêncio.

Os pais claramente não têm noção do que seus filhos de OITO anos estão fazendo à noite. Preocupados demais com a segurança dos nossos filhos no mundo real, acabamos deixando-os praticamente desprotegidos no mundo virtual. Essa anedota, contada pelo pediatra Daniel Becker, mostra a gravidade do problema do uso de celular e das redes sociais por crianças. A criança ter um celular já é um horror, a criança estar em uma rede social é um outro horror, a criança ter um celular à noite no quarto é perigosíssimo. São muitos erros empacotados em uma historinha só. 

Será que ainda podemos recuperar uma infância saudável, no mundo real, tirando as crianças e adolescentes desse exílio de seus corpos, inteligência, e das suas relações com outros? Acreditamos que sim, mas isso vai requerer muito trabalho de todos nós - pais, escolas, comunidades e governos.

Bora dar o fora de uma infância (e adolescência) digital?

Dando o fora em…

3…

A Geração MSN.

Como muitos dos meus amigos “millennials” , eu (Thaís) entrei no mundo on-line por meio do MSN Messenger. Criei uma conta no final dos anos 90, sentada na frente do nosso PC 486 que se conectava à Internet por meio de um modem discado. Como os “pulsos” eram muito caros, o tempo que eu podia passar na frente do computador era limitado. Minha vida social aos 14 anos se passava majoritariamente fora de casa, entre escola, handebol, SESC e casas de amigas. "Você vai estar online mais tarde?" significava algo como "até logo" - na Internet, onde ainda éramos nós mesmos, mas com uma nova sensação de liberdade. Naquela época, menos de 20 anos atrás, não existia o conceito de estar conectado o tempo todo. O computador e a internet eram apenas ferramentas maravilhosas que ajudavam minha mãe a fazer o trabalho dela de forma mais eficiente e me davam um sentimento extra de pertencimento. 

Lembro também quando os celulares entraram em moda. Minha mãe e eu dividíamos um Nokia pré-pago. A melhor coisa era o joguinho da cobrinha. Quando uma de nós estava fora de casa, levava o celular, que servia apenas para emergências, pois cada ligação para um celular valia um rim. Meu sonho, na época, era ter um daqueles celulares "flip", que os alunos da escola Bandeirantes (em São Paulo) ficavam exibindo na hora da saída. 

Quando cheguei na Alemanha, aos 16 anos, a internet me ajudou a manter o contato com meus amigos do Brasil, o que facilitou a transição entre culturas. Ganhei o celular que sempre quis: além de ser flip, tinha uma câmera! (péssima resolução, diga-se de passagem), que usava para mandar mensagens extra curtas - para economizar tempo e dinheiro. 

Mesmo conectada, a maioria do meu tempo ainda era passado fora de casa: na escola, no handebol, no teatro, na rua. O celular era apenas para marcar encontros e ligar para minha mãe ou padrasto. O computador era usado em casa, para pesquisa, para ouvir música e para me manter conectada com meus amigos no Brasil. 

Eu não tive meu próprio Smartphone até 2012, quando já estava na universidade. Foi quando comecei a me conectar mais nas redes, quando a necessidade de conexão constante aumentou. Sabendo tudo o que sei hoje, acho que o fato de eu ter estado sempre um pouco atrasada no que diz respeito à tecnologia foi mais positivo do que negativo.

Mesmo tendo passado a maioria da minha vida na frente das telas (TVs, computadores e celulares) eu tive uma grande sorte: minha infância e adolescência foram baseadas em experiências no mundo real. Naveguei a primeira onda da internet. Uma onda positiva, que democratizou a informação, como afirma Jonathan Haidt nesse vídeo sobre seu novo livro “Free The Anxious Generation” (Liberte a geração ansiosa). 

As pessoas que nasceram apenas 10 anos depois de mim (Gen Z) não tiveram tanta sorte assim. O que aconteceu?

Quem nunca?

2…

A Geração Ansiosa.

Professor de Liderança Ética na Stern School of Business, na New York University, Jonathan Haidt compilou estudos, debates e sugestões, tornando-se uma voz forte contra smartphones nas mãos de crianças e adolescentes. Haidt sugere que em média as pessoas nascidas em e após 1996 são psicologicamente diferentes daquelas nascidas apenas alguns anos antes. Desde a infância, Haidt sugere, elas sofrem de um “fraco sistema imunológico psicológico” - a capacidade de uma criança lidar, processar e superar frustrações, pequenos acidentes, provocações e conflitos normais sem sucumbir a horas ou dias de turbulência interna -, algo que persiste na adolescência e além, promovendo proporções mais altas de adultos jovens ansiosos e esquivos.

Eu lembro muito bem de como eu, aos 10 ou 11 anos, andava livre por São Paulo, entre escola, supermercado, casas de amigos, e SESC. Sozinha, a caminho da escola, eu passava pelo açougue, pela vendinha, pela banca do jornal, pela padaria. Todos me conheciam. Estava sob os olhos da vizinhança.  Quando estava no interior, de férias, nós brincávamos nos quarteirões inteiros, soltos pela cidade, até algum adulto começar a gritar que já era hora de entrar. Lógico que a gente brigava, chorava e se machucava. Os médicos da clínica perto de casa não aguentavam mais fazer raio-x dos meus ossos luxados e fraturados. Mas a gente também aprendia muito. Aprendíamos como viver em grupo, a nos defender, a fazer política. 

A geração após a minha já não teve esta sorte. Tá certo que eles têm menos probabilidade de quebrar um osso, mas o preço que estão pagando pode ser ainda mais alto. Com o avanço da TV a cabo, veio também um bombardeio de notícias ruins de todos os lugares. As preocupações com a segurança e o foco no sucesso acadêmico levaram os pais a priorizar as atividades estruturadas em detrimento das brincadeiras livres, fazendo com que crianças e adolescentes passassem menos tempo ao ar livre participando de atividades exploratórias, típicas da infância. 

“Até uma década atrás, adolescentes eram de longe os mais propensos a quebrar um osso por imprudência. Eles andavam de bicicleta, saltavam em rampas, subiam em árvores. Isso aconteceu até a primeira geração passar a puberdade com smartphones em mãos – o primeiro iPhone foi lançado em 2007 e a mídia social ganhou força em 2012. Foi então que o índice de adolescentes feridos psicologicamente escalou incessantemente, e o número de ossos quebrados despencou”, revela Haidt.

Superproteção no mundo real e subproteção no mundo virtual

O que acontece quando a criança não pode mais brincar livremente? De acordo com a pesquisa de Peter Grey, a queda na brincadeira contribuiu para o aumento da ansiedade, da depressão, do suicídio e de sentimentos de impotência em crianças, adolescentes e jovens adultos. 

A brincadeira funciona como o principal meio pelo qual as crianças (1) desenvolvem interesses e competências intrínsecas; (2) aprendem a tomar decisões, resolver problemas, exercer autocontrole e seguir regras; (3) aprendem a regular suas emoções; (4) fazem amigos e aprendem a se dar bem com os outros como iguais; e (5) experimentam alegria. Através de todos esses efeitos, a brincadeira promove a saúde mental.

De fato, os estudos e pesquisas agregados por Haidt por mais de três anos demonstram que longe de interação presencial, isolados, sugados por um mundo virtual viciante e avassalador, nossas crianças, adolescentes e jovens adultos se tornam cada vez mais vítimas do aumento drástico das taxas de distúrbios mentais. Os maiores aumentos, em termos relativos e absolutos, estão entre os distúrbios de humor, uma classe de doença mental composta principalmente por depressão e transtornos de ansiedade (que inclui anorexia). Em 2019, pouco antes da COVID-19, um em cada quatro estudantes universitários americanos sofria de um transtorno de ansiedade, em comparação com apenas um em cada dez em 2010. A taxa pode ser ainda mais alta hoje.

Para muitos membros da Gen Z (nascidos no período 1997-2012) os efeitos já são sentidos. Haidt argumenta que essa é a geração mais tímida, que menos arrisca, menos namora e faz menos sexo.  Também vimos pela primeira vez uma geração com o QI inferior ao dos seus pais. É uma tendência que foi documentada na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda - países onde os fatores socioeconômicos têm sido bastante estáveis por décadas. 

Com todas essas evidências, por que não conseguimos reverter essa situação?

“Está acontecendo agora mesmo e eu estou perdendo!” - Além da eleição de Donald Trump, os Simpsons também previram a epidemia de FOMO (Fear of Missing Out / Medo de Ficar de Fora).

1…

Medo de ficar de fora

Primeiramente, a informação fornecida aos pais é parcial e tendenciosa. A mídia está cheia de afirmações infundadas, propaganda enganosa e informações imprecisas. A discrepância entre o conteúdo midiático e a realidade científica é perturbadora, mas não deveria surpreender. Precisamos lembrar que a indústria digital gera bilhões de dólares em lucro a cada ano, e crianças e adolescentes são um recurso muito lucrativo. 

Para empresas que valem bilhões de dólares, é fácil encontrar cientistas complacentes e lobistas dedicados. A própria Brené Brown conta que muitas empresas de vídeo games e mídia social ofereceram-lhe um emprego. Quando ela negou trabalhar para eles, sempre escutava o argumento de que eles já trabalhavam com “os melhores neurocientistas e psicólogos do país”. Isso é preocupante. 

Como explica Tristan Harris (ex-especialista em ética de design da Google) neste vídeo em discussão com Jonathan Haidt, quando analisamos a mídia social, precisamos saber que ela não é assim por acaso. De acordo com Tristan, as mídias sociais foram desenhadas e planejadas para explorar vulnerabilidades psicológicas humanas: mensagens de alerta que não preveem adequadamente o tempo de atenção necessário, recompensas intermitentes que incentivam comportamentos viciantes (semelhante a jogar em máquinas caça-níqueis.), a fluidez excessiva da tecnologia que inibe a reflexão antes da ação, interações estressantes que afetam negativamente o bem-estar mental, e finalmente, o medo de perder informações importantes que mantém os usuários conectados constantemente.

 A verdade é que só estamos nas mídias sociais hoje porque nossos amigos e familiares também estão. É um salão de espelhos: Você preferiria não estar ali, mas segue conectado pois seus amigos estão. Seus amigos, por sua vez, também só seguem nas mídias sociais pois você (e outros) também estão lá. 

Um estudo de 2023, conduzido entre 1.000 estudantes universitários, investigou o valor que os estudantes atribuem às suas contas do TikTok e do Instagram. Os participantes foram questionados sobre quanto dinheiro aceitariam para desativar suas contas por quatro semanas. Em média, os usuários precisariam ser pagos $59 para desativar o TikTok e $47 para desativar o Instagram, mas estariam dispostos a pagar (!!!) $28 e $10, respectivamente, para que outros (inclusive eles mesmos) desativassem suas contas. Isso indica uma "armadilha do mercado de produtos", onde os indivíduos continuam usando as plataformas mesmo que prefiram que elas não existissem. 

Os pesquisadores ainda demonstraram que grandes parcelas dos usuários ativos do TikTok e do Instagram prefeririam viver em um mundo sem essas plataformas. Para entender porque os usuários ativos poderiam preferir um mundo sem mídias sociais, perguntaram a eles sobre seus motivos para continuar usando as plataformas. O principal motivo, evidente tanto nos usuários do TikTok quanto do Instagram: o medo de ficar de fora.

No fundo, toda essa mania de plataforma social não passa de um problema de coordenação movido pelo medo de ficar de fora. E isso, em todos os níveis. Países não querem passar legislações com medo de perder apoio dessas grandes empresas bilionárias. As empresas não querem ser as primeiras a mudarem, com medo de perderem seu espaço no mercado da atenção. Os pais não querem proibir seus filhos de entrarem na mídia social, com medo de seus filhos ficarem isolados de seus amigos. As escolas não querem proibir o uso do celular, com medo de perder o apoio dos pais. As crianças e adolescentes não querem sair, com medo de deixar de pertencer aos seus círculos de amizades. Esse medo todo de ficar de fora faz com que todos nós fiquemos de fora. Fora da vida real. Nunca totalmente presentes.

DandoOFora.com

Por causa dos nossos telefones, estamos sempre em outro lugar.

Prof Sherry Turkle (Harvard), autora de “Alone Together”

Dando o fora na Dependência digital:

Libertando nossas crianças e jovens da dependência digital. 

Escrever esta última parte da nossa série sobre "Dependência Digital" não foi nada fácil, pois o tema do impacto dos smartphones e mídias sociais em nossas crianças e jovens passa por muitas camadas de informações, muitas vezes conflituosas. Mas mesmo assim, depois de toda essa pesquisa e de vários exemplos concretos, não temos dúvida de que precisamos agir. 

De acordo com Haidt, a mudança de hábitos digitais deve começar a partir de quatro regras, a serem implementadas conjuntamente pela sociedade: 

  1. Impedir que crianças abaixo de 14 anos tenham acesso a smartphones. Para crianças que precisam ir para a escola sozinhas, um telefone básico (lembra aquele do jogo da cobrinha?) supre muito bem a necessidade de se comunicarem com os pais no caminho.

  2. Proibir acesso às redes sociais até os 16 anos. Por exemplo, Haidt celebrou ainda a decisão do governo da Flórida, que em março passado vetou a mídia social para menores de 14 anos, um passo para alcançar a idade ideal de 16.

  3. Abolir celulares das escolas. As notificações são um imenso fator de distração. Haidt também apoia as pochetes Yondr, usadas em escolas para trancar os telefones durante as aulas. Muitas cidades e países já implementaram políticas rigorosas de proibição de telefones nas escolas.

  4. Acabar com a onda de superproteção parental que tomou conta das últimas gerações. Precisamos promover uma infância mais independente, com mais brincadeiras ao ar livre e responsabilidades no mundo real. O autor sugere que as escolas abram seus playgrounds após a aula para "brincadeiras livres com objetos diversos", onde as crianças têm "quase total autonomia".

Do livro Eduque sem medo da Dra. Becky Kennedy, trazemos um quinto ponto, não como regra, mas como dica prática para reconectarmos com nossas crianças e jovens no dia a dia:

  1. Play no Phone (PNP) Time / Tempo de Brincadeira Sem Celular. Durante pelo menos 10-15 minutos, deixe seu celular em algum lugar totalmente fora de alcance (preferencialmente em outro cômodo) e deixe sua criança escolher do que quer brincar. Entre no mundo dela completamente. Siga suas deixas, não dê pitacos sobre a brincadeira. O que importa é sua presença. Nós estabelecemos aqui em casa que o momento entre jantar e a hora de dormir é PNP Time. E sem as interrupções digitais, tanto o Arthur quanto Vini e eu nos divertimos muito mais!

Precisamos relembrar nossa infância e confiar que podemos ter vidas mais cheias de experiências reais (ao invés de baseadas na “realidade” virtual). O documentário O Começo da Vida 2 traz vários exemplos de como isso pode ser feito e do efeito positivo que essas iniciativas têm não só nas vidas dos nossos filhos, mas de todos nós.  

Vini e eu não sabemos ainda como podemos contribuir, mas estamos realmente dispostos a fazer parte desse movimento. Começando por nossa casa, pela escola de Arthur, pelos amigos e familiares, e, caso vocês topem, indo além. Bora dar o fora rumo a um futuro melhor?

Para todo mundo que acredita que essa epidemia digital é irreversível, - na expressão anglófona, acreditam que "o trem já saiu da estação," - Haidt manda um recado: “Ora, se o trem está cheio de crianças em direção a uma ponte quebrada, é hora de freá-lo.”

DandoOFora.com

O verdadeiro caráter de uma sociedade é revelado pela forma que ela trata suas crianças.

Nelson Mandela

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