Hoje no Dando o Fora: Parábola budista; Percepção não é realidade; Percebendo os outros (e nós mesmos); A humildade é o caminho; Dando o fora nas percepções distorcidas.

Um homem um dia teve que viajar por muito tempo sem saber que sua esposa estava grávida. Quando ele voltou, pensou que a criança fosse de um vizinho que trabalhava para eles. A vida deles se tornou miserável. Toda vez que ele olhava para o menino, via o rosto do vizinho. Até que um dia, seu irmão veio visitá-los. Olhando para o menino, ele disse: “Seu filho é a sua cara. Uma verdadeira cópia”. Aquela visita foi libertadora porque ajudou o pai a se livrar de sua percepção equivocada que estava controlando sua vida (e a vida da sua família) por anos. É comum acreditarmos que vivenciamos o mundo como ele é objetivamente. Mas na verdade, quando vemos as coisas ou ouvimos outras pessoas, muitas vezes não vemos claramente ou não ouvimos de fato. Vemos e ouvimos nossas experiências, projeções e preconceitos. Sim, a percepção é uma força poderosa pela qual percebemos e damos sentido ao mundo. Entretanto, quando nossa percepção é distorcida ou incorreta, ela pode levar a emoções erradas e ações equivocadas.

Bora dar o fora na nossa percepção distorcida de uma realidade absoluta?

Dando o fora em…

3…

Percepção não é realidade.

De acordo com o Wikipedia, a percepção é “a organização, identificação e interpretação da informação sensorial para representar e compreender a informação apresentada ou ambiente”. Quer dizer, a percepção é nossa habilidade de compreender o mundo através dos nossos sentidos. Mas, ao que parece, a percepção é muito mais complicada do que isso. De acordo com o psicólogo e professor da Universidade de Vírginia, Dennis Proffitt, o que percebemos em um dado momento não é determinado apenas pelos nossos sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato), mas também por nossas habilidades físicas pessoais, níveis de energia, sentimentos, identidades sociais e muito mais.

Em seu livro Perception: How Our Bodies Shape Our Minds (edição em inglês), Dennis Profitt explora como coisas que parecem verdadeiras e universais muitas vezes são apenas nossa própria experiência única do mundo.  Por exemplo, estávamos assistindo ao novo filme Wonka (super indicamos, por sinal). Tem uma cena onde Wonka finalmente captura o Oompa Loompa (Hugh Grant está maravilhoso nesse papel): 

• Então , você é o homenzinho engraçado que anda me seguindo, né?

• Homenzinho engraçado, como ousa. Pois fique sabendo que eu tenho uma altura respeitável para um Oompa-Loompa. Em Loompalândia eu sou considerado alto. Eles me chamam de Altivo. Então, pare de olhar para mim com essa boca aberta como se eu fosse algo nojento que você encontra num lenço.

Quem tem razão? O Oompa-Loompa é realmente pequeno? Pequeno em relação a quem ou ao que? Esta cena nos mostra que dimensionamos o mundo em relação ao nosso corpo e presumimos que a maneira como vemos (e percebemos) as coisas é como elas realmente são. 

Neste podcast, Dennis Proffit explica como nossos corpos determinam o que podemos fazer e com isso o que podemos aprender. O fato de sermos bípedes nos permitiu liberar nossas mãos para que pudéssemos desenvolver e manipular ferramentas que, por sua vez, nos permitiram criar conhecimentos que não teríamos tido se tivéssemos que explorar o mundo engatinhando. Isso tudo se dá dentro de um contexto social da forma que nossos corpos e nossos meios determinarão a imagem do mundo que teremos. 

Como cada um tem um corpo diferente e vive em um grupo diferente, necessariamente, diante a mesma situação, acabamos com uma diversidade de percepções. Entre outros, três fatores principais influenciam a maneira como uma pessoa vê as coisas ao seu redor, incluindo motivação, estado emocional e experiência.

Tudo está conectado

Em uma série de estudos Proffitt e colegas revelaram que nossa condição física e nossos movimentos afetam nossa percepção do ambiente. Por exemplo, ser obeso ou estar cansado faz com que as distâncias pareçam maiores, enquanto carregar uma mochila pesada faz com que os morros pareçam mais íngremes. Isso sugere que nossa capacidade de movimentação e percepção de energia afetam a forma como percebemos a dificuldade de tarefas como subir uma colina, moldando, por sua vez, nossa percepção do mundo ao nosso redor.

Um outro experimento envolvendo gerentes de fundos de hedge demonstrou que aqueles que conseguiam contar com precisão seus próprios batimentos cardíacos sem contato físico eram operadores mais bem-sucedidos. Se lembrarmos de um exemplo que já demos nessa newsletter sobre a fadiga da decisão de que juízes tendem a ser mais severos quando estão cansados ou com fome, ou se pensarmos que crianças que tomam café da manhã têm melhor desempenho na escola e menos problemas de comportamento, podemos ver que a maneira como agimos e interagimos está infinitamente ligada não só às nossas experiências mas também à maneira como nos sentimos fisicamente em um devido momento.

Se nossos corpos, nossas experiências, nossos sentimentos, se tudo isso influencia como vemos e vivemos o mundo - momento por momento -, como podemos ter tanta certeza do que é “real”? Como podemos entrar em discussões sem fim sobre os mais diversos assuntos tentando convencer outras pessoas de que a nossa perspectiva é a verdade absoluta?

2…

Percebendo os outros (e nós mesmos).

Para que possamos entender as diferentes perspectivas diante de uma mesma situação, precisamos conhecer as diferentes pessoas que estão interagindo nessa situação. Mas o quão bem você acha que conhece sua amiga ou seu parceiro, ou até mesmo o porteiro do prédio? Mesmo que a maioria de nós finja modéstia, de acordo com a pesquisa da Professora Emily Pronin da Universidade de Princeton, nós temos uma percepção inflada do quão bem conhecemos as pessoas ao nosso redor, sejam elas partes da nossa vida íntima ou até completos estranhos com quem cruzamos na rua. Pronin chama esta distorção perceptiva de "Ilusão de percepção assimétrica". 

Como explica Malcolm Gladwell, no seu maravilhoso livro Falando com Estranhos: O que deveríamos saber sobre as pessoas que não conhecemos, apesar de ter um nome complexo, esta “ilusão” perceptiva é simplesmente nossa convicção interna de que conhecemos os outros melhor do que eles nos conhecem - e que temos insights sobre eles que eles não têm (mas não vice-versa). Esta ilusão de percepção é um fator determinante em nossas interações com outras pessoas, “pois nos leva a falar quando seria melhor ouvir e a ser menos pacientes do que deveríamos ser quando os outros expressam a [sua própria] convicção [ilusória] de que são eles que estão sendo mal compreendidos ou julgados injustamente."

Além da “ilusão de percepção assimétrica”, Gladwell identifica em seu livro dois outros mecanismos importantes que distorcem a maneira como percebemos (e nos relacionamos) com os outros:

Teoria da Verdade Padrão (Truth-Default Theory): Eu confio até não dar mais.

Desenvolvida através da pesquisa de Timothy Levine (Universidade do Alabama), esta teoria argumenta que nosso padrão interno é de acreditar que as pessoas com quem estamos lidando são honestas. Mas isso não quer dizer que acreditamos em todo mundo de olhos fechados. Como explica Gladwell, “a crença não é a ausência de dúvida. Você acredita na honestidade de alguém porque não tem dúvidas suficientes para quebrar o padrão da verdade”. 

Isso é ruim? Apesar de nos induzir a potenciais erros de confiança e frustrações em nossos relacionamentos, Malcolm argumenta que a Teoria da Verdade Padrão é positiva. Só confiando uns nos outros, pudemos sair dos bandos pré-históricos para desenvolver uma sociedade complexa que tem por base a cooperação entre indivíduos. Malcolm nos convida não só a continuar confiando nos outros, mas também a sermos gentis com aqueles que confiam nas pessoas erradas, pois estão apenas seguindo nosso instinto humano.

Problemas de Transparência: Eu acho que todos reagem a situações diversas como eu.

Segundo Malcolm, é o problema da transparência que nos leva a ter as mais desvairadas percepções sobre outras pessoas. Nós somos no geral bons juízes de caráter e personalidade, mas apenas naquelas situações envolvendo pessoas que compartilhem nossa cultura ou experiência de vida. Quando estamos lidando com “estranhos”, todo o juízo de valor que fazemos tem por base nossa própria experiência e percepção de vida. 

Citando uma pesquisa que pedia aos participantes que detectassem quando alguém estava mentindo ou falando a verdade, Gladwell explica que “os seres humanos não são maus detectores de mentiras. Somos maus detectores de mentiras nas situações em que a pessoa que estamos julgando é incompatível [não está se comportando da maneira que achamos que deveria, de acordo com as normas culturais, sociais ou pessoais]... A transparência é um pressuposto aparentemente de senso comum que acaba se revelando uma ilusão.” Uma ilusão que pode ter consequências sérias, como os mais variados exemplos citados por Gladwell de pessoas negras fuziladas por policiais americanos (brancos) simplesmente porque reagiram de forma diferente do “padrão” esperado. Exemplos que, infelizmente, também vemos por todo o Brasil.

Vivendo numa sociedade cada vez mais conectada, precisamos todos os dias conversar e lidar com estranhos. O que deveríamos fazer?

1…

A humildade é o caminho.

Precisamos começar reconhecendo os limites (às vezes bem curtos) da nossa percepção e, sabendo disso, tentar ser humildes e generosos em nossas percepções e interpretações dos atos e personalidades alheios.

Os cegos e o elefante 

Um grupo de sábios cegos ouviu dizer que um animal estranho, um elefante, havia sido trazido para a cidade, mas nenhum deles estava ciente de sua configuração e forma. Por curiosidade, eles disseram: "Precisamos inspecionar e conhecer esse animal". Então, eles o procuraram e, quando o encontraram, tentaram tateá-lo. A primeira pessoa, cuja mão pousou na tromba, disse “Este ser é como uma cobra grossa”. “Não, é uma espécie de leque”, disse o cego cuja mão havia pousado na orelha. Uma outra pessoa, cuja mão estava sobre a perna, afirmou, “O elefante é um pilar como um tronco de árvore”. O cego que colocou a mão de lado disse que o elefante "é uma parede". Outro que sentiu o rabo, descreveu-o como uma corda. O último cego sentindo a presa do elefante afirmou que o animal era duro, liso e como uma lança. Alvoroçados, os seis sábios ficaram discutindo. Até que o sétimo sábio cego, descendo das montanhas, apareceu conduzido por uma criança e pediu ao menino que desenhasse no chão a figura do elefante. Quando o sábio tateou os contornos do desenho, percebeu que todos estavam certos e iludidos ao mesmo tempo. 

A vantagem da diversidade

Quando entendemos que há muito mais no mundo do que o que vemos, sentimos e percebemos a partir de nossa perspectiva limitada, podemos finalmente ver a vantagem da diversidade. Como seria ver o mundo do ponto de vista do meu gato? Do meu cachorro? De um pássaro? De uma criança? De uma pessoa com uma experiência totalmente diferente da minha? Com esse pequeno jogo de perspectiva, com curiosidade, ver o mundo pelos olhos dos outros nos ajuda a ver mais do mundo. Pouco a pouco, com cada nova perspectiva, nosso mundo se torna um lugar maior.

Entender como os fatores que muitas vezes julgamos irrelevantes influenciam nossas percepções, pensamentos e decisões é particularmente valioso em meio aos desafios políticos e sociais que vivenciamos hoje. Conhecer essas influências pode nos impedir de criar conflitos desnecessários com outras pessoas que veem as coisas de formas diferentes e nos ajudar a tomar melhores decisões coletivas.

O benefício final disso? Com sorte, ter um pouco de humildade e curiosidade pode nos ajudar a obter uma compreensão mais profunda de nós mesmos e dos outros. Como os cegos da parábola, quem sabe finalmente consigamos “ver” o quebra-cabeça inteiro.

Como diz Dani Black nesta linda canção😀 

Dando o fora nas percepções distorcidas:

1. Conscientização: como em vários outros Dando o Fora, o primeiro passo para aprender a lidar com nossas percepções distorcidas é a conscientização. Para nos conscientizar de que todos somos influenciados por nosso passado, nossas memórias, nossos corpos, nossos sentimentos, e que nossas percepções não são a realidade, Thich Nhat Hanh oferece uma fórmula muito simples: Pergunte-se sempre:

   Você tem certeza? 

2. Pratique empatia: A próxima vez que estiver em uma situação, digamos que não concorde com alguém, pergunte a si mesmo: "Como é o mundo sob a perspectiva dessa pessoa"? Seja curioso. Pergunte: Como você está vivenciando essa situação?

3. Feedback e reflexão: Busque feedback de fontes confiáveis para ter uma ideia de como suas percepções podem estar afetando suas emoções e ações. Faça uma autorreflexão regular para identificar e abordar quaisquer percepções distorcidas.

4. Ofereça sua interpretação mais generosa: De acordo com Alain de Botton (The School of Life), todos nós precisamos de “caridade”: uma caridade de interpretação. Mesmo quando estranhos e pessoas não conhecem nenhum dos detalhes que nos levaram a algum comportamento (ou a nossa opinião), contamos com que os outros imaginem que haverá mágoa e arrependimento por trás das reclamações furiosas, ou um senso de vulnerabilidade por trás da arrogância. Como diz Becky Kennedy em seu livro Eduque sem medo: torne-se o pai ou a mãe que você quer ser:

   “Encontrar o que há de bom dentro de nossas crianças, muitas vezes pode vir de uma simples pergunta: qual é a interpretação mais generosa do que acabou de acontecer"? 

   Encontrar a interpretação mais generosa nos ajuda a desconectar o que está acontecendo no interior da outra pessoa (inclusive em nossos filhos) do que está acontecendo no exterior (comportamento). Uma interpretação generosa mantém a ideia de que não somos nossas ações e de que existe doçura e bondade sob a superfície de alguém. Diferentemente da caridade financeira, todos nós, independentemente de nossa situação socioeconômica, estamos sempre prestes a precisar de alguém que nos ofereça sua interpretação mais generosa.

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