Dando o Fora na Vergonha Crônica

Sem-vergonhices em Paris; O que é a Vergonha?; De onde vem a Vergonha?; Vergonha boa existe? A culpa como compasso moral; Cinco dicas para lidar com a Vergonha.

Hoje no Dando o Fora: Sem-vergonhices em Paris; O que é a Vergonha?; De onde vem a Vergonha?; Vergonha boa existe? A culpa como compasso moral; Cinco dicas para lidar com a Vergonha.

Enquanto reformávamos nosso apartamento alguns anos atrás, Vini, Arthur e eu (Thaís) mudamos para um pequeno studio (e por pequeno, leia-se 19 metros quadrados!) no coração de Saint German des Près, um dos bairros mais chiques de Paris. Foi uma experiência interessante, observar as diferentes realidades das pessoas que circulavam pelo bairro, entre estudantes, turistas, e madames que faziam suas compras no Bon Marché e tomavam seus cafés no Café de Flore.

Muitas vezes me senti deslocada, vivendo num ambiente onde o que você tem, as roupas que você veste, as compras que faz, os cafés e restaurantes que visita, parecem dizer tudo o que alguém precisa saber sobre você. Era difícil não entrar numa loja ou num restaurante e não me sentir como uma impostora. Alguém que só estava ali por acidente. Principalmente quando descobrimos que nosso prédio possuia uma piscina, mas que nós, por estarmos alugando a kitchenette (ok, studio soa mais chique), não tínhamos direito de usar. Todas as vezes que descíamos para levar o lixo e deparávamos com alguém saindo da piscina, o sentimento de vergonha por não poder participar desse “clube” aumentava - principalmente quando Arthur perguntava, desconsolado, o porquê de não podermos entrar. 

O apse desse sentimento de inferioridade veio um dia enquanto voltávamos da escola. Arthur tinha três anos e não parava de pular e correr pela calçada, atropelando os pequenos cachorros das pomposas senhoras. Já nas imediações do prédio, notei que todos na rua olhavam para a gente, como se tivessem percebido que a gente não pertencia àquela comunidade. Até que duas senhoras começaram a rir, apontando na direção de Arthur. Quando olhei para baixo, não acreditei no que vi. Arthur estava sem calça. Nesse pula que pula dele, a calça folgada tinha escorregado e ele agora desfilava com ela no tornozelo. 

Envergonhada, subi a calça do meu filho. Mas Arthur, vendo todo mundo rir, achou aquilo engraçadíssimo e começou a pular de propósito para que a calça caísse. Meu filho de três anos ainda não tinha um sentimento de que aquilo era algo “errado” ou “indecente” aos olhos da sociedade. Não existia nele um sentimento de inferioridade ou de inedequação. Ele era livre de algo que nós adultos já não sabemos o que é viver sem: vergonha. Ao ter aquele estalo, relaxei. Não olhei para mais ninguém. Não me importei com as senhoras que eu nem conhecia. Simplesmente me deixei levar pela leve e gostosa brincadeira do meu filho. 

É realmente uma arte e uma dificuldade imensa para nós, adultos, voltarmos a ser como crianças. A vergonha é um sentimento que todos já experimentamos, mas sobre o qual ninguém gosta de falar. Nossa vergonha é tão enraizada (e demonizada), que o simples fato de falar sobre sentir-se envergonhado provoca vergonha. 

Na minha experiência, dar o fora na vergonha pode ser bem difícil. Mas começar é bem fácil, e só requer duas palavrinhas: “eu também”. Pois não há nada tão universal quanto este sentimento tóxico que nos tolhe desde a infância, o que torna essa conversa cada vez mais importante de ser, em família e como sociedade.

Bora dar o fora na vergonha crônica?

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O que é a vergonha?

Como seres humanos, somos a mais social de todas as espécies. Não evoluímos através de nosso individualismo, mas sim através da nossa capacidade coletiva de colaboração e comunicação. Fomos programados para a conexão e o pertencimento. A pesquisadora Brené Brown, autora do livro A Coragem de Ser Imperfeito, define a vergonha como o medo de não ser digno de conexão e pertencimento, o medo de não ser suficiente e, por isso, ser rejeitado por suas fraquezas. Sentir vergonha é ter medo de romper vínculos, medo de que algo que fizemos ou deixamos de fazer nos torne indignos da conexão com outras pessoas.

É por isso que a vergonha é tão dolorosa quanto debilitante. Segundo Brené Brown, uma vez que o ciclo da vergonha começa, você realmente só tem três opções: lutar, congelar ou fugir. Em termos de comportamento humano, isso se traduz em:

Agressão: Você ataca e envergonha outras pessoas em retaliação. Isso perpetua e exacerba a cultura da vergonha. (Por exemplo, você sente vergonha por não ser tão bem sucedido quanto seu irmão e ataca comentando sobre a aparência dele. Seu irmão por sua vez se sente envergonhado e desconta na sua esposa.)

Complacência: Você agrada as pessoas e compensa demais para fingir que nada está errado. Isso causa decepção, pois você sucumbe às pressões dos outros e se desconecta do seu eu interior. (Por exemplo, você sente vergonha por não se sentir adequado à equipe no trabalho, então compensa fazendo piada com a pessoa de quem seu colega estava fofocando. Mais tarde, você se sente culpado por participar da fofoca.)

Silêncio: Você não diz nada e internaliza seus sentimentos. Isso leva à desconexão, pois você se fecha emocionalmente. (Por exemplo, você se afasta de tudo aquilo que remete àquilo que te envergonha e mergulha em seu trabalho).

Quando estamos no ciclo da vergonha (ou apenas com medo de passar vergonha), ficamos mais propensos a nos entregar a comportamentos autodestrutivos (vicíos, transtornos alimentares, etc.) e a atacar ou envergonhar os outros. A vergonha corrói nossa coragem de ser quem somos, o que nos leva a abrir mão de partes nossas que não consideramos dignas de amor, tentando escondê-las cada vez mais. 

Mas este modo de sobrevivência tem um enorme porém: ele impede que conectemos de forma significativa com nosso eu autêntico - e com os outros -, prejudicando nossa capacidade de viver plenamente. Ao afirmar que você nunca será bom o suficiente, a vergonha impede o desenvolvimento da sua dignidade (worthiness), a convicção de que, sim, você é bom o suficiente, exatamente do jeito que você é.

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Se quisermos uma mudança significativa e duradoura, precisamos esclarecer as diferenças entre vergonha e culpa e exigir o fim da vergonha como ferramenta de mudança. Isso também significa abandonar a rotulagem.

Brené Brown

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De onde vem a vergonha? E para onde vai?

Através da sua pesquisa, Brené Brown identificou 12 categorias de vergonha relacionadas à imagem corporal e saúde, aos relacionamentos e a questões de status social: 

  • Saúde física e mental, 

  • Vícios, 

  • Sexo, 

  • Envelhecimento, 

  • Aparência, 

  • Paternidade/maternidade,

  • Família, 

  • Traumas, 

  • Religião, 

  • Dinheiro e trabalho, 

  • Estereótipos e rótulos.

Qual é a categoria que mais se relaciona com seus sentimentos de vergonha? 

Quando eu (Thaís) estava na escola, sofri bullying por não atender aos padrões de beleza. Apesar de não valorizar muito a aparência, eu queria ser aceita pelo grupo "descolado”. O bullying fez com que eu me sentisse envergonhada da minha imagem e acabou criando uma profecia auto-realizável, pois fui buscar conforto na comida e vivi com sobrepeso por mais de 20 anos. Até hoje, subir na balança me causa ansiedade. Muitos dos gatilhos de vergonha que enfrentamos na vida adulta têm origem na infância, sendo construídos em casa, na escola ou através de interações com figuras de autoridade e colegas cientes (ou não) das nossas vulnerabilidades.

Não podemos mudar nosso passado, mas podemos mudar o futuro.

Hoje tento reconhecer cada vez que a vergonha bate à porta - aquela vozinha que tenta me falar que não sou suficiente - e fazer um exercício que descobrimos no livro do Phil Stutz de “abraçar minha sombra” (termo do Carl Jung para descrever a parte de nós mesmos da qual nos envergonhamos). Fecho os olhos e imagino a Thaís adolescente. Tento trazê-la comigo toda vez que saio para correr, ou faço minhas refeições saudáveis, ou paro para meditar e fazer yoga. Ela está lá, em tudo que aprendi a fazer para cuidar não só do meu corpo mas também da minha mente e alma.

Educar sem vergonha.

Tento fazer esse exercício não só comigo mesma, mas também com Arthur. Vini e eu acabamos de ler o livro Eduque sem Medo: Torne-se o pai ou a mãe que você quer ser da Dra Becky Kennedy. Para ela, a vergonha é o que nos impede de realmente nos conectarmos com nossos filhos. Conectar-se com seus filhos em primeiro lugar, nutrir essa conexão e reparar a conexão quando necessário. Esse é o núcleo da filosofia de Becky Kennedy para famílias mais harmoniosas.

Em todos os capítulos de seu livro, Becky bate sempre na tecla de que as pessoas são  “boas por dentro” (o título original do livro é Good Inside). Essa ideia nos permite diferenciar entre a natureza de alguém e seu comportamento. Por exemplo, eu sei que meu filho é bom por dentro, mesmo que às vezes ele venha a se comportar de uma forma problemática numa situação de frustração ou sofrimento. Separar o que somos do que fazemos é fundamental para diferenciar entre a culpa (e.g. eu fiz algo ruim) e a vergonha (e.g. eu sou ruim). 

Como a Brené Brown, Dra Becky sugere que muitos comportamentos problemáticos das crianças, como falta de desculpas, mentiras ou desrespeito, são apenas reações à vergonha. Por exemplo, uma criança que se recusa a se desculpar após machucar alguém pode estar evitando lidar com sentimentos de ser inamável. Crianças evitam a vergonha pois acreditam que ela é perigosa e associada à possibilidade de serem abandonadas. Por isso aprendem a esconder partes de si mesmas que acreditam ser rejeitáveis, com medo de serem julgadas, invalidadas ou punidas (ou seja, emocionalmente abandonadas).

O que podemos fazer como pais e educadores?

Quando observamos que nossos filhos sentem vergonha, nosso objetivo principal deve ser lidar com a situação imediatamente. As intervenções verbais e o “olhar feio” podem não ser eficazes, pois a criança pode estar sobrecarregada, assustada e paralisada. O mais importante é estar presente, oferecer segurança e transmitir que você está lá para apoiá-la. Às vezes, o silêncio pode ter mais impacto do que palavras. Reconhecer e validar as emoções (vergonha) da criança - por exemplo, afirmando calmamente: "Estou aqui com você. Vamos superar isso juntos" - proporciona conforto e estabilidade. 

Reagir com violência física ou verbal, castigos ou tentar ignorar a situação pode exacerbar os sentimentos de vergonha e reforçar na criança a crença de que uma parte dela não é digna de amor. Precisamos nos conectar com nossos filhos e demonstrar que estamos com eles independentemente dos seus comportamentos, pois eles são intrinsecamente bons (e nós também!).

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Vergonha boa existe? 

Em 2012, o corredor  Ivan Fernandes Anaya  surpreendeu o mundo. Ele era o segundo na corrida de Cross Country de Burlada, quando viu o queniano, Abel Mutai, que liderava até então com folga, diminuir o ritmo por achar que já havia concluído a corrida. Ao invés de aproveitar a oportunidade para vencer a corrida, ele alertou o concorrente e o empurrou até a vitória. 

Como Cortella explica nesse vídeo, um jornalista perguntou a Ivan Fernandes o porquê dele “ter deixado o queniano ganhar”. O espanhol não entendeu a pergunta do jornalista, pois não achava que ele poderia ter feito algo diferente. O jornalista voltou a insistir: “Mas você poderia ter vencido!” Ivan olhou-o surpreso e respondeu... “Mas qual seria o mérito da minha vitória? Qual seria a honra dessa medalha?” e principalmente, “O que a minha mãe pensaria disso?”. 

Para ele, a mãe era o último reduto que ele não poderia envergonhar. Porque a mãe (ou pai) pode representar aquilo que nos deu a vida, o que nos gerou. Dessa forma, a vergonha pode ser usada como um tipo de compasso moral.

O que o Cortella (e a maioria de nós) chama corriqueiramente de vergonha, interpretamos como sendo o equivalente ao conceito de “culpa” da Brené Brown (ligado a algo que fazemos, não ao que somos). Segundo a Brené, a culpa é adaptativa e útil - ela confronta algo que fizemos ou deixamos de fazer com nossos valores e nos faz sentir um desconforto psicológico. A vergonha, por outro lado, não é útil, já que ela protege nosso mundo interno e nos leva a manter secretas partes nossas que julgamos serem inamáveis. De fato, estudos mostraram que, na maioria dos casos, a vergonha é mais fortemente associada aos sintomas de ansiedade do que a culpa.

Por isso é essencial que possamos diferenciar entre a famosa “vergonha na cara” (culpa que serve como compasso moral) da qual Cortella fala e a “vergonha de ser quem somos”, a vergonha que nos isola, limita e diminui.

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Tudo o que não puder contar como fez, não faça! Se há razões para não contar; há para não o fazer.

Immanuel Kant

Dando o fora na Vergonha (crônica):

O primeiro passo para mudar qualquer coisa em nossas vidas é cultivar consciência sobre ela. Especialistas como Becky Kennedy e Brené Brown acreditam que, com o tempo, se aprendermos a interagir de forma mais curiosa e sensível com a vergonha (a nossa e a dos outros), a intensidade e o impacto negativo dessa vergonha em nossas vidas tende a diminuir.

Uma das estratégias mais citadas em nossa pesquisa é a prática da meditação, (auto-) compaixão e empatia. Como a vergonha procede de um conceito social – acontece entre pessoas – ela também é curada entre pessoas. 

  1. Reconheça a vergonha quando ela surgir em sua vida. Use técnicas de automonitoramento, como manter um diário, para identificar e desafiar crenças baseadas na vergonha.

  2. Entenda as origens de sua vergonha. Reflita sobre experiências passadas, educação e contextos sociais para entender de onde vem sua vergonha. Reconheça que a vergonha geralmente decorre de circunstâncias fora do seu controle e ofereça compaixão ao seu eu mais jovem.

  3. Converse consigo mesmo para desenvolver a autocompaixão. Durante uma crise de vergonha, a tendência é falarmos conosco de uma maneira tóxica ou violenta, como nunca falaríamos com as pessoas que amamos e respeitamos. Lembre-se de ser impecável com sua palavra! Quando estiver angustiado, pergunte a si mesmo "Faz sentido eu me sentir assim?" e "O que seria útil para mim neste momento?" para cultivar a bondade e a compreensão consigo mesmo.

  4. Escreva uma carta de autocompaixão. Escreva uma carta para si mesmo como se fosse um amigo próximo ou um ente querido, expressando bondade e compreensão em relação às suas dificuldades. Isso pode ajudar a despertar a capacidade de se relacionar consigo mesmo de uma forma mais gentil e carinhosa.

  5. Compartilhe sua vergonha dentro de relacionamentos seguros. A vergonha se alimenta do silêncio. Uma das estratégias mais eficazes para recuperar o poder da vergonha é falar sobre suas dificuldades com pessoas em quem você confia. 

E, acima de tudo, abandone a ideia de que você precisa mudar para ser digno de amor e pertencimento. Você não precisa provar que é "suficiente". Lembre-se, seu valor é baseado em quem você é, não no que você faz.

P.S.:

Todas as ferramentas acima se aplicam também para aprender a reconhecer e lidar com a vergonha em nossos filhos. Ainda escreveremos um Dando o Fora sobre os desafios da parentalidade, mas até lá, recomendamos sem nenhuma reserva o livro da Dra Becky Kennedy. Realmente nos ajudou a avançar rumo aos pais que desejamos ser para Arthur. Em dúvida? Este episódio do Armchair Expert (em inglês) é uma ótima apresentação do livro e da Dra Becky.

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