Dando o Fora na Crise de Identidade

As profissões do Arthur; O que você quer ser quando crescer?; Fazer versus Ser; Uma forma fluida de ser; Cinco perguntas para diversificar e integrar seu senso de identidade.

Hoje no Dando o Fora: As profissões do Arthur; O que você quer ser quando crescer?; Fazer versus Ser; Uma forma fluida de ser; Cinco perguntas para diversificar e integrar seu senso de identidade.

Domingo passado Arthur acordou cedo, sentou ao meu lado e disse que queria conversar. 

— Mamãe, posso te falar o que é que eu gostaria de ser quando crescer?, ele perguntou, se aconchegando no meu colo.

— Eu gostaria de ser um pirata, um “corrista” e um “campista”.

— Filho, o que é corrista ou campista?

— Ah mãe, aquele que corre e acampa. Eu quero acampar e viajar muito.

— Tá certo.

— Mas também quero ser um cuidador dos animais. Ah, e quero ser uma piranha.

— Como assim, uma piranha? - perguntei, escondendo o riso.

— Isso é só jeito de falar, mamãe. Eu quero ser um….hmmm…um peixe. 

— Ah, entendi.

— Na verdade, eu quero ser um pescador. Isso, um pescador.

— Mas filho, você não queria cuidar dos animais?

— Eu vou ser um pescador diferente. Só vou pescar os peixes pra ver se eles estão bem, aí eu devolvo eles pra água, - ele me explicou, saltando do meu colo para ir brincar de lego.

Essa conversa me fez lembrar da minha própria infância.

“O que você quer ser quando crescer?” era uma pergunta que me deixava muito confusa. Assim como Arthur, eu não conseguia pensar em uma coisa só. Um dia queria ser atriz, no outro médica, no outro cientista, escritora e diretora de cinema. Me parecia estranho ter que escolher uma coisa só. Algo que me definiria para sempre. Mesmo sem sofrer pressão para escolher uma coisa ou outra, aquilo me estressava muito, e não só durante minha infância. 

Lembro de ter me sentido acolhida lendo meu livro preferido de todos os tempos:

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Elas [as pessoas grandes] adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, as pessoas grandes jamais se interessam em saber como ele realmente é. […] Mas perguntam: Qual é a sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai? Somente assim é que elas julgam conhecê-lo.

Antoine Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe

Quando conhecemos pessoas novas, perguntamos o que fazem como se aquilo definisse quem são. Conhecemos e valorizamos “advogados”, “médicos”, “engenheiros”, “empresários”, mas não nos apresentamos como “uma pessoa curiosa” ou “uma pessoa que dá o seu melhor todos os dias”, ou ainda “uma pessoa que tenta ser íntegra”. Vivemos numa sociedade em que as pessoas valorizam mais o “ter” ou o “fazer” do que o “ser”. 

Cada vez que perguntamos aos nossos filhos o que eles vão ser quando crescer, estamos implicitamente perpetuando este sistema que iguala o ser ao fazer (e, consequentemente ao ter). Ensinamos nossos filhos (e talvez a nós mesmos) a se definirem em termos da profissão que vão exercer ou das coisas que vão ter, e não em termos de seus valores essenciais.

Bora dar o fora na crise de identidade? Na ideia de que somos o que fazemos?

Dando o fora em…

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O que você quer ser quando crescer?

Todo pai ou educador quer o melhor para seu filho ou aluno. Mas como indica Adam Grant em seu livro Pense de Novo, quando se pergunta a uma criança ou jovem o que quer ser quando crescer, não aceitamos respostas como "uma mãe", “uma pessoa feliz” ou até “uma piranha” ;) . De acordo com Grant, isso pode explicar a lacuna entre o valor que os pais relatam passar a seus filhos (preocupação com os outros) e o valor que os filhos relatam aprender com seus pais (a importância do sucesso). Por exemplo, um estudo apontou que cerca de 80% dos jovens relatam que seus pais ou professores priorizam as conquistas dos filhos ou alunos em detrimento do cuidado com eles

Quando nos definimos apenas pelo que fazemos ou pelo que temos, nosso valor depende do resultado que alcançamos - algo que muitas vezes não podemos controlar. Ao perguntar a uma criança (ou até a um adulto) “o que você quer ser quando crescer”, vendemos a ideia de que existe algo externo que nos define como pessoa. Algo que pode ser alcançado. E é aqui que mora o segundo problema: perpetuamos a ideia de que existe um único chamado ou vocação (aquela atração externa que alguns indivíduos podem sentir para seguir uma carreira) para cada um de nós. E quando não conseguimos encontrar o nosso chamado, ou por alguma razão falhamos em desenvolver nossa “vocação”, podemos acabar nos sentindo perdidos e confusos. Adam e seus colegas descobriram, por exemplo, que muitas vezes nós não conseguimos atender aos chamados: muitas paixões profissionais não pagam as contas, e muitos de nós simplesmente não têm o talento necessário para aquele sonho vocacional.

Há ainda um terceiro desafio: as carreiras dos sonhos raramente correspondem aos nossos sonhos de infância. Quando eu, Thaís, finalmente consegui entrar na área acadêmica, percebi que não era nada parecido com a minha ideia romantizada do cientista que nunca parava de estudar, pesquisar e aprender. Quando percebi o que realmente precisaria fazer dentro da minha área (cada experiência é única, precisamos ressaltar), decidi sair da academia. Tive primeiro que me perdoar: entender que eu fiz o melhor possível com as informações que eu possuía no momento da escolha. Poucos sabem dos sofrimentos da área acadêmica, dos paradoxos entre professores e pesquisadores, e da ansiedade de sempre precisar correr atrás de financiamento para projetos, em detrimento da atividade de “pesquisa”. Ter sucesso como cientista iria significar me afastar do que tinha me atraído para essa área. 

Então qual é a solução? Devemos parar de encorajar nossos filhos a sonharem alto? 

Não. Mas, ao invés de perguntar às crianças o que querem fazer, podemos começar a convidá-las a pensar sobre o tipo de pessoa que querem ser quando crescerem. Ao fixarem seus valores intrínsecos como guias para suas vidas, estarão mais bem preparadas para escolher como irão contribuir para o mundo onde querem viver, empoderando-se também para criar novas profissões e áreas de atuação.

Fonte: Memedroid

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Fazer versus Ser

Podemos mesmo ser o que queremos ser? A Professora Lúcia Helena Galvão explora a questão nessa sua palestra sobre como podemos construir o ser humano que queremos ser.

De acordo com Lúcia Helena, quando alguém nos pergunta o que queremos ser, geralmente respondemos aonde pretendemos ir, trabalhar, morar. Não respondemos de fato sobre “quem pretendemos ser”. Ela categoriza as respostas a esta pergunta em três tipos:

  1. “Não sei, sou levado pelas circunstâncias”.

  2. Os que contam o que querem fazer ou ter.

  3. Quero me tornar um ser humano melhor, me completar como ser humano.

É preciso distinguir o que queremos fazer (1 e 2) de quem queremos ser (3). 

Voltando à pesquisa de Adam Grant, é preciso entender que não podemos fazer tudo o que queremos. No âmbito do fazer, existem limitações morais (não posso fazer tudo o que quero), mentais (posso não ter a inteligência do Einstein, mesmo que possa aprender e realizar meu potencial), emocionais (ainda não posso ser como o Gandhi só porque quero), e físicas (mesmo que tentasse, não poderia ser tão boa no futebol como o Pelé, ou correr tão rápido como o Usain Bolt). Existem limites em todos os âmbitos de uma personalidade fundamentada no fazer

Por outro lado, no âmbito do ser, temos uma capacidade quase infinita de desenvolvimento. Aqui, Lúcia Helena nos traz quatro exemplos (baseados na natureza) do ser humano que podemos escolher: 

  1. Viver como uma pedra que não sai do lugar e que vive em função da inércia; 

  2. Viver como uma planta que vive em função de otimizar energia (por exemplo, dinheiro);

  3. Viver como um animal cujo objetivo é sobreviver e perpetuar a espécie, com o maior comforto possível;

  4. Ser humano, se construir com valores, virtudes e sabedoria. 

Se somos movidos por coisas, pelo que queremos ter ou fazer, ao preencher e alcançar nossos desejos, ou ao sermos forçados (ou escolhermos) deixar uma vocação, do que viveremos? 

Se somos movidos pelo que queremos ser (valores e virtudes), não perderemos de vista quem somos, aconteça o que acontecer. Estamos procurando algo que justifique toda a nossa vida, e não somente nossos projetos pessoais. Algo que nos faça crescer, dia após dia. Como disse Lúcia Helena, “cresça tanto que as pessoas tenham que te conhecer de novo”. Este é o dever do ser humano: construir a si mesmo com as decisões que toma minuto a minuto, hora a hora, dia a dia.

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É preciso coragem para crescer e tornar-se o que você realmente é.

E.E. Cummings

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Uma forma fluida de ser.

Tornar-nos quem realmente somos não é um evento único, mas um processo contínuo de autodescoberta e crescimento. Algo que exige introspecção, reflexão e disposição para confrontar as verdades incômodas que estão dentro de nós. O processo exige autenticidade - o alinhamento de nossas ações, crenças e valores com nosso verdadeiro eu -, e acima de tudo resiliência, diversificação e integração de nossas várias identidades.

Estudos mostram que, quando há uma fusão muito grande entre a identidade (por exemplo, atleta) de uma pessoa e sua busca, o resultado é frequentemente ansiedade, depressão e burnout. Para navegar com eficácia pelos ciclos contínuos de mudança, precisamos desenvolver um senso fluido e complexo de nós mesmos, ou auto-complexidade (tradução livre do self-complexity). De acordo com Brad Stulberg (autor de Master of Change), para que nossa identidade seja igualmente robusta e flexível, e para que possamos navegar pelas mudanças inevitáveis da vida, precisamos aprender a diversificar nosso senso de identidade.

Quanto mais você se define por uma única atividade, mais frágil se torna. Quando não temos sucesso nesse âmbito, ou quando algo muda inesperadamente, acabamos por perder a noção de quem somos. Imagine sua identidade como uma casa. Se a casa tem apenas um quarto (um aspecto) e o quarto começa a inundar, não há para onde fugir. Mas se trabalharmos para construir vários quartos (cultivar outros aspectos de nossa identidade), quando algo inesperado acontecer num quarto, podemos nos refugiar nos outros quatros - independentemente de quão inacabados eles estejam. Para que possamos livremente transitar de um quarto ao outro, precisamos integrar essas diferentes partes da nossa identidade.

Se eu, Thaís, tivesse me definido somente como pesquisadora (ao invés de nutrir e desenvolver minhas identidades como mãe, esposa, ativista, escritora), teria sido muito mais difícil aceitar sair da área acadêmica. Naquele momento de incerteza, os outros aspectos fortes da minha identidade me ajudaram a navegar um período turbulento de transição. Movida pelos meus valores (contribuição, curiosidade/conhecimento e comunidade), encontrei na família, na campanha que liderava e na expectativa de ser mãe “quartos” que me acolheram. 

É lógico que para ser excelente e vivenciar algo plenamente, precisamos nos dedicar ao máximo. Como falamos na semana passada, é preciso saber o que é essencial e focar no que realmente faz sentido, em cada momento: mas só até certo ponto. Se sua identidade ficar muito ligada a um conceito ou empreendimento - inteligência, aparência, idade, relacionamento ou profissão - é provável que você enfrente um sofrimento significativo quando as coisas mudarem. E elas sempre mudam. Parafraseando a famosa citação de Benjamin Franklin, “nada é mais certo neste mundo do que a morte [as mudanças] e os impostos”.

Como sempre, o segredo está no “nem oito, nem oitenta”: precisamos nos preocupar profundamente com as pessoas, atividades e projetos que amamos. Isso é fundamental para uma existência rica e significativa. Entretanto é essencial que não deixemos nossa identidade se tornar muito rigidamente ligada a um único aspecto, prejudicando nossa adaptabilidade e resiliência.

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O eu é um estilo de ser que se expande continuamente em um processo vital de definição, afirmação, revisão e crescimento, um processo que é a imagem, podemos dizer, do próprio processo de vida de uma sociedade saudável.

Robert Penn Warren, Extraído do blog The Marginalian 

Dando o fora na Crise de Identidade:

Cinco perguntas para te ajudar a diversificar e integrar seu senso de identidade.

  1. Você tem uma visão do “eu” que você gostaria de ser?

  2. Quais são seus valores essenciais? Selecione 3-5 valores que descrevam qual é o seu propósito. Você pode se guiar pela lista que compilamos. (Revisite nossa newsletter “nosso passado não nos define” para mais detalhes de como usá-los nos momentos de incerteza).

  3. Faça um inventário de suas identidades (ex. Pai, atleta, membro de uma equipe, etc.). Você sente que seu significado e valor próprio vem majoritariamente de alguma identidade específica? 

  4. Como seria diversificar seu senso de identidade? Mesmo que deseje se dedicar totalmente a um determinado aspecto hoje, você precisa garantir que não deixará os outros completamente para trás.

Você está construindo o ser humano que quer se tornar? Como você está medindo o progresso? Por exemplo, você está escrevendo ou mantendo um diário sobre enfrentamentos, escolhas e progresso? A Thaís começou a usar essa forma de diário estóico (min 2:07) que está funcionando muito bem para ela (com duas perguntas adicionais: Qual a coisa mais importante que fiz hoje?Qual a coisa mais importante que aprendi hoje?)

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